Eles pensam que a maré vai mas nunca volta… Quero ver como que eles reagem à ressaca.

Na própria palavra do senhor diz:
Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.
Preparas perante mim uma mesa
Na presença de meus inimigos
E unge minha cabeça com óleo
E o meu cálice transborda.
Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte
Não temerei mal algum
Pois tu estás comigo.
Mil cairão ao meu lado
Dez mil a minha direita
Mas eu não serei atingida.

Essa citação religiosa, misto de salmos, evangelho e tiração de onda com cantores gospel, você só escuta em um lugar: no delicioso show da banda Verónica Decide Morrer. Também é um desabafo de Verónica Valenttino, vocalista da banda e que tem uma história de repressão pela igreja. Após o show no Bolacha Mágica, que contou com a abertura do duo New Model, Verónica bateu um papo com Sapoti Soundz sobre rock’n’roll, arte, preconceito, liberdade e empoderamento.

_dsc0335
“Todos os guetos e não guetos esperam por mim.”**

A baterista Vladya Mendes esteve presente no bate papo, mas, assim como o vocalista Jonaz Sampaio, se mostrou bem cansada. Era o segundo show da noite (poucos instantes antes haviam tocado no Ato Show – Festa da Pré Parada da Diversidade Sexual), e deixaram a palavra para Verónica Valenttino, que a domina muito bem. A apresentação no Bolacha Mágica tem um público de fãs, fiéis seguidores que anseiam em vê-los tocar ao vivo em Fortaleza, mas também acompanham pela mídias o crescimento profissional da banda, agora radicada em São Paulo, onde trabalha seu primeiro disco. Eles tentam atingir um público cada vez mais amplo, e, apesar da resistência muitas vezes demonstradas por alguns, percebem que conseguem provocar em muita gente o que Verónica chama de catarse, “…é quando o cara que está curtindo nosso som vai ser tocado”.

_dsc0272
“Eu subo no palco para gozar, para sambar na cara da sociedade hipócrita.”**

Resistência e espanto por uma parcela da sociedade, Verónica sente no dia-a-dia. Ela é, em seu cotidiano, o que ela mostra ser no palco: livre. Liberdade e empoderamento realmente se mostram como as palavras de ordem que guiam as atitudes da banda. “Quando falo de liberdade e de emponderamento é porque a gente está nesse momento de tipo – eu não aceito isso de ti, você não precisa pensar assim e você não pode me enquadrar e me rotular dessa forma”. E a condição e o espaço encontrados na sociedade para travestis e transexuais ainda é muito restrita. “Pra mim ainda não é simples ir comprar um pão. Estou falando de um olhar zoologizado de uma sociedade hipócrita. Não somos zebras, não somos bizarras, não somos aberrações.

img_20161115_155116
“Não acredito em ninguém que mente para si mesmo e seja completamente pleno. A culpa é um dos piores sentimentos que se pode ter.” *

E Verónica Decide Morrer no palco atinge todas as expectativas para um show do bom e velho rock’n’roll. Bebendo no rock dos anos 80, eles fazem som incendiário, de excelente qualidade em estúdio, mas que mostra toda a sua força ao vivo, cara a cara com o público. As ideias estão claras em suas letras, que representam bem a vivência nas ruas, a experiência pessoal de seus músicos e o perfeito feeling com o estilo de música. Hoje Verónica Valenttino busca se expressar de outras formas, desde suas origens nas artes cênicas até o revolucionário desfile somente com modelos trans e travestis no São Paulo Fashion Week. Essa diversidade vem funcionando bem e ela conquista cada vez mais espaço, mas é no rock’n’roll que sua mensagem é melhor transmitida. “O rock’n’roll é um estado constante de inquietação. Eu canto os fados e as Piaf’s da vida, mas ainda sim acho que o rock’n’roll é uma questão de atitude. A atitude com o rock’n’roll… ela á agressiva, ela é potente, ela é forte, ela é eficaz… e rápida”.

img_20161115_155415
“O rock’n’roll é de com força. O rock’n’roll é vraa.”*

E é exatamente através da atitude no palco combinada com sua música sensacional e letras instigantes que Verónica busca atingir a plateia. “A gente sabe da potência e a gente sabe que toca. E o rock’n’roll é foda por isso, porque ele toca tanto aquele que vai curtir o nosso trabalho de imediato, como também aquele que odeia travesti, mas que vai ser tocado pelo rock’n’roll”. Os que já conhecem a banda sempre percebem algo novo no show, pois cada show é diferente. E os que estão escutando-a pela primeira vez serão fatalmente tocados e sentirão a catarse já citada por Verónica. Para esse intuito o rock’n’roll é essencial. “Eu consigo chegar no escroto idiota, que adora o rock’n’roll e que é super machista e que esquece do Bowie, que esquece do Queen, que esquece de tantas referências aviadadas que a gente tem, porque o rock’n’roll é liberdade, então não pode ter estranhamento, não pode ser pudico. Como você diz que curte rock’n’roll e se espanta comigo?”.

_dsc0276
“O rock’n’roll é liberdade, não pode ser pudico, não pode ter estranhamento; pelo contrário, nós somos desobedientes civis.”**

O show é vibrante, iniciando com “Testemunho de Trava” que relata um pouco das experiências ruins que os músicos da banda tiveram com a igreja. “A gente foi muito reprimida, porque a igreja reprime, ela não te liberta. Ela te diz – a culpa é sua, isso é pecado”. É nessa música que é recitado o desabafo em forma de versículos bíblicos do início do texto (mas não está no disco, tem que ir ao show para conferir). Passa por “Roxy Music”, música que ganhou um belíssimo clip dirigido por Dellani Lima, e por “Feito Hai Kai”, escolhida para próximo clip da banda, dirigido por Fábio Audi e Jesuita Barbosa. Não poderia faltar o cover de Rita Lee, “Papai me empresta o carro”, lembrando a primeira fase da banda, ainda aqui em Fortaleza.

Curioso perceber como Verónica Valenttino canta com tanta propriedade e tão naturalmente as canções que são, em sua maioria, assinadas por Jonaz Sampaio e Léo BreedLove (guitarrista da banda). Isso se justifica porque “nosso processo criativo é muito junto… são casamentos, quando a gente encontra pessoas que pensam como você e que acreditam na tua parada, aí você toma força, e acredita e potencializa”. A presença de Verónica Valenttino no palco é marcante, mas a banda não teria a mesma força sem a voz de Jonaz, como ele mostra quando assume o vocal principal em “Dentro de Mim”, um dos pontos altos do show.

_dsc0284
“… o plano era não ser envolver. Mas tudo é apenas questão de tempo…”**

Verónica Decide Morrer está em seu melhor momento, mas certamente voos mais altos serão alçados. Esta fase de sua carreira coincide com um avanço das ideias reacionárias e anti-libertárias. Bolsominions e Malafaias espalham machismo, misoginia, homofobia e todo tipo de atitudes retrógradas que tendem a golpear duramente quem busca fazer uma arte libertadora. “Infelizmente (vivemos esse momento). Estamos em SP e fazendo alianças com galeras que estão fazendo a mesma coisa que a gente, que é lutar pela sua própria existência. Embora estejamos num momento super sombrio e escroto e machista e cada vez mais… enfim, a gente também vem como linha de frente de uma certa ressaca, porque pra gente sempre foi escroto”. É um sopro de esperança perceber que há pessoas engajadas nesse pensamento.

img_20161115_155624
“Nenhum show é igual ao outro, temos verdades atuais a falar, temos inquietações atuais.”*

Verónica cita que está se associando com uma galera interessante em São Paulo, com artistas que vem resistindo e criando obras contestadoras em várias áreas – hip hop, teatro, audiovisual, moda. E a banda comprou essa ideia. “Não temos mais tempo de fazer música, ou arte, ou rock por hobby – estou preocupada literalmente com uma pedra que pode me atingir ao sair daqui, tenho que mudar isso de alguma forma e a arte é o único meio… A arte é a única capaz de sensibilizar e de transformar. Eu não sei fazer outra coisa, já trabalhei com telemarketing, já fui panfleteira, já fui arteducadora (adorava), já fui bailarina/dançarina, mas o que eu sei melhor fazer é isso: entregar-me através da música, te levar a questionamentos através da minha voz, através do meu corpo, porque eu não canto só com a voz. E só funciona por isso”.

_dsc0381
“Os dois lugares em que eu gozo são na cama e no palco.”**

“Eu surgi no teatro e no início eu chamava de personagem, porque ainda era distante de mim. E de repente começou a borrar a minha vida. E hoje eu percebo que eu sempre fui, só de outra forma, só com outra carcaça. Minha vida social hoje é Verónica”. Mas afinal Verónica Valenttino é apenas mais uma personagem? Será um caso de criatura que assumiu a vida do criador? Não há certeza das respostas à essas perguntas, mas é fato que nossa sociedade precisa cada vez mais de Verónicas. Para tocar. Para chocar. Para mostrar o lado que você não quer enxergar. E também, claro, para divertir com um autêntico espetáculo de rock’n’roll como há tempos não víamos. Encerramos com um trecho da peça Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, mas que ganha um incrível significado quando declamado por Verónica Valenttino em seus shows.

Eles pensam que a maré vai mas nunca volta
Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui recuando,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
e tão forte quanto eles me imaginam fraca.
Quando eles virem invertida a correnteza,
quero saber se eles resistem à surpresa,
quero ver como que eles reagem à ressaca.

*Fotografia Daniel Teófilo
**Fotografia Sapoti Soundz

Deixe uma resposta