Onde termina um disco? Em sua última música? Onde termina uma música? Em seu último verso, seu último acorde? Segundo Daniel Medina, “uma canção pode ter mais que começo, meio e fim”. Segundo Sapoti Soundz, bater um papo sobre sua música amplia o universo que o artista cria com suas palavras e sons. Adentramos o universo musical de Daniel Medina, ampliando a visão, desdobrando as faixas de ‘Evoé’, seu primeiro disco, que foi lançado nas mídias digitais agora em 2017 e que, após o Catarse (já encerrado), irá se materializar como disco físico em 2018.
Medina, hoje radicado em São Paulo, teve seu início na vida artística no Curso Princípios Básicos de Teatro – CPBT, do Theatro José de Alencar, tradicional e essencial na formação da cena cultural na cidade de Fortaleza. Logo após, passou pela banda Manilha Mundial, com apresentações performáticas usando elementos teatrais. Influenciado também pelas pérolas recebidas por seu “traficante de discos, Mário Vinil”, Daniel começou a compor algumas músicas que não se encaixavam na proposta da Manilha. Com o fim da banda, partiu para a carreira solo.
‘Evoé’, mais do que um disco, é uma evocação ao entusiasmo de materializar suas ideias e ideais. Escutando-o de ponta a ponta, percebemos um disco salteado, formando uma onda, nem sempre periódica, transitando entre músicas mais confortáveis e outras com arestas, mais ásperas. É um disco múltiplo, plural, menos fechado, que apesar de ter uma estética MPB, envolve uma pitada da boa psicodelia nordestina, canções românticas, referências litorâneas e a cidade como personagem bastante presente. Símbolos cristãos e de outras mitologias se misturam com personagens folclóricos do Nordeste e elementos espaciais. Produzido por Igor Caracas e Saulo Duarte, com participações especiais de Juruviara, Marcelo Jeneci e Gero Camilo, ‘Evoé’ conta com seus músicos como elementos essenciais para o resultado final, com Medina indicando-os como protagonistas de várias faixas.
É curioso perceber que, ao conversar com o compositor, ele fala sobre suas músicas em terceira pessoa, como se elas tivessem vida própria e fossem independentes, o conduzissem, e não ao contrário. Talvez seja isso mesmo. Afinal, se “canções são escritas sem saber aonde elas vão nos levar”, como diz Daniel, o caminho que Evoé está indicando para ele está apenas começando. Com vocês, Evoé, faixa a faixa, por Daniel Medina.
Anti-Herói
A guitarra de Bruno Rafael é protagonista nesta faixa. Essa é uma canção que pode ser muito delicada, mas a gente quis envenenar de algum jeito.
A letra de ‘Anti-Herói’ tem uma coisa meio épica, meio aventureira, meio desbravadora e para representar esse sentimento acabo fazendo uso de expressões recorrentes da cultura cristã, como “cova dos leões”. Referência direta e piada pronta com meu nome. São sempre imagens grandiosas que são concluídas com um convite à dança, com uma coisa cotidiana, diária, afetiva.
Ela é a primeira música do disco, porque tem uma coisa de abre-alas, de evoé. ‘Anti-Herói’ é uma das canções mais complexas para as pessoas, as pessoas tem uma necessidade muito grande em entender. Eu sempre brinco: se não entender, não desista, porque tem outras coisas muito mais legais que entender. Se você se sente envolto por essa incisão, por esse desarnar, por esse galope, já está valendo.
Santa Ceia
Assim como em ‘Anti-Herói’, esta é mais uma faixa com elementos acústicos, com a presença forte da percussão de Igor Caracas. São duas músicas que, depois, vão entregar o disco para faixas mais eletrônicas, mais sintetizadas.
‘Santa Ceia’ é uma canção litorânea, que se pauta em certos clichês do que seria ser litorâneo. Mas ao mesmo tempo esse calor pecaminoso e à brasileira tem um pouco a ver com isso. Música para ouvir de sunga na praia da Redonda, em Icapuí.
É importante lembrar: a maçã, para além de fruto do pecado, era o fruto do conhecimento. E conhecimento tem a ver com avidez, o álibi de ter nascido ávido. Esse nosso calor humano no Nordeste… Em Fortaleza, a gente tem uma parada de raciocínio, de interação de afetividade que, quando sabemos usar isso, nos leva a lugares inimagináveis.
Nós Ao Vivo
Nessa música já começamos a introduzir os elementos sintéticos do disco. Aqui o disco dá um salto. Tem uma escolha de repertório muito pautada em temática ou sequências lógicas ou em quebras propositais. Tenta-se não colocar muito peso em uma energia só ou saltar entre elas, tanto temática como de corpo sonoro. Uma curva de relaxamento e tensão.
‘Nós Ao Vivo’ foi lançada como single e acaba sendo um carro-chefe, mesmo que eu não queira, por ser uma canção mais abrangente, mais possibilista. Eu sinto que ela acaba comunicando num lugar muito específico, muitas pessoas se sentem mais linkadas a ela.
Apesar de ter sido lançada em 2015, essa canção foi composta entre 2010 e 2011. O Brasil já passou por tantos ciclos, e o mundo… Ela foi composta naquela época da Praça do Sol, na Espanha, da Primavera Árabe, Ocupa Cinelândia, Ocupa Wall Street. E é louco, porque você vê como esses movimentos vão se transformando. Aí uma época eu falei assim, não tem nada a ver, mas, para além de movimentos específicos, existe nela uma avidez de sair da zona de conforto, de se colocar pra fora de si e de ir para o todo, dentro de uma coletividade.
Outros Sóis
Essa foi uma canção composta para uma amiga cantar: Cibele Bonfim. E ela ainda vai cantar um dia. Ela já havia participado de alguns shows meus e foi uma canção pensada pra voz e guitarra.
Tem um verso dela que é ambíguo de certa forma, mas o que me interessa é um lado dele mais literal, que é essa coisa do “cansados de canção”. Essa estrutura de canção que a gente conhece tende à extinção. E eu não vejo problema nenhum nisso. Essa canção mais narrativa, que requer um pouco mais de atenção, de pausa… tem cada vez menos isso. O próprio conceito de disco vem se diluindo, indo pra playlist. E essa ideia do “cansado de canção” aparece outra vez no disco em ‘Cobra do Contrário’, quando falo “Ri da minha música, Tua anti-música” que é outra perspectiva sobre isso.
‘Outros Sóis’ foi composta como algo mais radical, tendo essa consciência, essa auto crítica, de se implicar nesse lugar de que são canções que requerem uma certa pausa e que a contemporaneidade nem sempre permite.
Boi-Cidade (part. Juruviara)
O reisado é uma manifestação folclórica, mas que tem muito a ver com o teatro. Essa canção é uma das que tem a maior letra, especialmente por ter sido pensada para um espetáculo teatral. E acabou indo pro disco sem corte, com a narrativa dela completa. Mais uma vez a imagem cristã aparece nela.
Não há pureza e sempre vamos ter nossos bodes expiatórios, seja em forma de cidade, seja em forma de morto em um programa policial. E precisamos nos questionar sobre isso. Essa canção fala, dentre outras coisas, sobre isso também. Sobre a relação com a cidade e com o outro dentro da cidade. Ela diz “Esse boi é o boi na medida para expiar os pecados”. Sempre tem um boi na medida para expiar os pecados, a gente encontra, a sociedade vai encontrar esse boi perfeito para expurgar, para se purificar.
Cancioneta (part. Marcelo Jeneci)
Essa é uma música despretensiosa. São sempre esses quatro acordes, de forma cíclica. Pra mim sempre teve algo meio poema-pílula. Se alguém diz “ela é muito simples”, eu digo “é!”. Se alguém diz “ela é muito pequena”, eu digo “é!”. E ela é só isso, a toda hora. E dizem: “como você bota o nome da música de Cancioneta?” Mas ela é isso, ela justifica esse nome.
E essa brincadeira com o amor, nessas maneiras diversas de falar sobre o amor, que quase vira uma ironia sobre o amor. ‘Cancioneta’ é uma das poucas músicas amorosas de fato do disco. E tem esse final, que acaba gerando uma quebra, uma ruptura de um ciclo, de uma continuidade… que talvez sejam conceitos mais teóricos que eu esteja falando agora, que não cheguem tanto de cara para as pessoas, mas que está aí de alguma forma no corpo da música.
Foi composta entre 2010 e 2011, meio inspirada em um relacionamento de uma amiga, meio inspirada em um relacionamento que eu tive. Eu não me considero um romântico inveterado. Então, assumir o cansaço, seja sexual, seja o fim dele, é algo que eu digo. Pra depois descansar e cansar. A gente vai cansar e vai ter que seguir… ela fala disso também, ela tem esse gatilho, essa consciência da dor.
Desde o inicio pensei em chamar o Marcelo Jeneci e eu achava que nessa música não cabia grandes arranjos, justamente por essa singeleza. Jeneci tem um grande trabalho como arranjador, com sintetizadores… essa coisa de botar a nave pra voar, como ele chama. Mas nessa ele concordou em fazer isso. Foi uma opção estética, pensando no álbum… havia a necessidade dela ser mais sequinha e outras terem mais elementos.
Cobra do Contrário (part. Gero Camilo)
Essa é outra música de letra grande depois de uma música de letra pequena. Mais uma com participação, agora de Gero Camilo… As participações acabaram juntas no disco, mas isso não foi pensado, foi percebido depois. A gente vem de ‘Boi Cidade’, uma canção com muita letra, com muita informação, uma canção muito porrada, uma canção mais forte, vai pra ‘Cancioneta’, uma canção mais sutil, pequena, menor, e cai em ‘Cobra do Contrário’, que é uma canção mais irônica e mais psicodélica.
Gero não existe! Ele entrou no estúdio, todo mundo ficou olhando e pensando “caralho!”… Quando ele começou a mandar o poema, foi incrível. Ele gravou várias vezes, mas foi a primeira que ficou. Ele já veio com tudo pensado, o tempo, a força, a intensidade, foi foda.
Tem uma frase do Guimarães Rosa logo no começo do ‘Grande Sertão: Veredas’ que ele diz assim: “Quem muito se evita, se convive”. É uma das frases que pauta ‘Cobra do Contrário’. É sobre essa relação que é inerente a gente, que o amor linka e o ódio também… os dois acabam gerando relações de proximidade. Relações tanto permeadas pela admiração, como pelo incômodo… são relações de se orbitar.
‘Surrealeza‘ é um poema escrito pelo Gero, antes dele sair de Fortaleza, e que havia declamado em alguns saraus, mas nunca havia publicado. Quando ele tirou da manga, eu falei na hora “vamos nessa!“. ‘Cobra do Contrário’ foi a única faixa em que fomos ao estúdio sem ter ensaiado nada, a gente não criou arranjo, não pensou em nada, foi tudo feito na hora. Vamos fazer, aí eu apresentei a música pro pessoal e saiu. O que é uma loucura, em termos de horas de estúdio. Porque pode não sair nada e estourar o orçamento, estourar tudo. Mas o Igor Caracas e o Saulo Duarte fizeram uma produção que deu certo, escolhendo os músicos corretos. O resultado estético de ‘Cobra do Contrário’, pra mim, é uma das coisas mais legais, uma faixa arejada, com a presença do Gero, com essa guitarra do Bubu [Gabriel Bubu, guitarrista nessa faixa], que não poderia ser outra guitarra, porque é um cara que flerta com outras galeras, o que torna essa guitarra bem especial no disco.
Lágrima de Índio
Eu brinco que essa canção é uma canção de amor e ódio à Fortaleza, mas não é exatamente isso. É uma canção de desassossego para com Fortaleza. É até difícil falar sobre ela. Tem algumas canções que influenciaram ela, uma chama-se ‘Messejana’, da Ângela Linhares e Gigi de Castro, que é bonita pra caramba, e tem a ‘Ruas da Cidade’, que é do ‘Clube da Esquina 2’.
Essa música demorou uns 5 anos para ser finalizada, eu fazia um verso e deixava… Aí a galera me cobrava “cadê a música?”, e eu fazia outro verso. Mas canção é isso mesmo, tem que ter um desapego. Você vai se cobrando, a coisa vai dando certo, você vai encaixando ali e fica com medo de dar o próximo passo… o que é a pior coisa que tem, porque tem 10 gravadas no disco, mas tem 50 inacabadas. E você tem que dar um fim nelas, acabe com elas antes que elas acabem com você… Ela foi composta aqui mesmo em Fortaleza, com as alegrias e as dores vividas aqui. Ela tem muito de artesania, tem muito essa questão do rasgado/riscado, do encaixe dos nomes, do labor, do palavra-que-puxa-palavra-da-imagem-que-puxa-imagem… E aí acabou levando um pouco mais de tempo do que eu gostaria.
Não deixa de ser uma canção romântica, mas que tenta ironizar um pouco isso. “Jurema tá de mal de Iracema, grávida da América do Sul”. A priori, falar de Fortaleza em época de chuva é falar de alagamento, e falar de alagamento pode ser falar de muitas coisas e muitos sentimentos, como a canção se propõe, ludicamente, a versar sobre essa etnia oprimida, que são, direta ou indiretamente, nossos ancestrais e de como eles permeiam nosso cotidiano, linguisticamente falando, o que é coisa pra caralho.
Cantar Vitória
Aqui temos outro protagonista do disco: a guitarra de Vitor Colares. Esse ruído agudo que passa a música toda… A música é toda formatadinha, aí o cara vem e faz isso. Coisas da produção, que, entendendo como uma canção mais plana, mais coloquial, chamam Vitor Colares e perguntam: “o que você consegue, o que você faz, o que você bota de teu?” Aí ele bota o dele.
É um discurso mais fluido, mais direto, mais afetivo. Tem uma relação com o forró, que no final se deflagra, mas tem suja tropicalidade também. E está sendo bem compartilhada, mesmo sendo a nona música do disco, o que é sinal que ainda tem gente que escuta disco.
Ela é também, no sentido de arranjo, uma canção muito respirada, o que é uma característica do trabalho da galera. Ao invés de bases que preenchem tudo, todo mundo ao mesmo tempo, toda hora, isso é pensado de forma que os elementos vão se preenchendo em espaços e frequências muito específicas. Por exemplo, o Vitor está numa frequência muito específica, pairando sobre a canção sem se chocar com ninguém. Tudo tem seu espaço, seu espaçamento, ao contrário de outras canções do disco, como ‘Cobra do Contrário’ em que tudo se mistura. Tem relação com a onda que as canções desenham no disco, de altos e baixos, de permanências e de curvas – dramáticas, não deixa de ser.
Icarus
Icarus é uma espécie de epílogo, de desfecho do Evoé. Ela tem uma relação com ‘Nós ao Vivo’. São canções mais “humanistas”, muito a ver com a espécie, uma evocação. As duas músicas se completam como forças opostas, mas como complementares também, essa coisa da coletividade e da individualidade, cada uma de seu modo. ‘Nós ao Vivo’ pensando no coletivo e na festa, ‘Icarus’ no indivíduo se entender como indivíduo perante o todo. Sobre não estar submisso a uma coletividade, seja ela qual for, e como isso é importante para o andar da carruagem. Seja o regime que for, seja o totalitarismo que for, de direita ou de esquerda, a individualidade é importante.
Ícaro é esse personagem, cujo pai inventou uma maneira de voar. E aí ele dá o toque pro filho que você pode voar, mas não vá tão alto que o Sol lhe queima e derrete suas asas. É uma canção antiga e, vendo agora, concordo um pouco com o pai, se a gente for um pouco além, a gente pode se dar mal, mas ao mesmo tempo é inerente à juventude o desejo e o anseio de ir um pouco adiante, de acreditar que pode dar um passo além.
É uma canção que não desvaloriza a coletividade, que está presente em vários momentos do disco, mas que entende que da individualidade, dessa sede individual, também surge o novo, ou surge a peste, ou surge o problema, a problematização, surge a beleza.