Entre outros processos, Uirá dos Reis lança uma campanha de financiamento de seu quinto livro, ‘Magma Obtuso’. Mas, para além desse livro, conversamos com ele sobre música, escrita, trilha sonora e viver.
Era noite e visitamos a casa onde hoje mora Uirá, no Benfica, bairro de Fortaleza/CE. De cara, uma escada longa e vermelha, entre paredes amarelas, nos recepciona. Nos posicionamos para a conversa e para ouvir a coletânea OSC.URO, que serviu de BG para o desfio do novelo poético-sonoro.
Remontamos do passado rostos, lugares, sons e o ano era 2001, no Universal Sport Bar, em Fortaleza, em uma apresentação entre bandas de rock e gritos de “viado” destinados a Uirá. Essa apresentação era a primeira do então recém-lançado álbum ‘O Fantástico Mundo do Sr. Hiena e de Suas Criaturas’, seu primeiro disco. Ele lembra que, na ocasião, recitou ‘Poema Fragor para o Amor do Rapaz’ (que também está no OSC.URO). E lá estava o rapaz, seu primeiro amor, ouvindo com ouvidos desconcertados talvez, já que ao final, segundo Uirá, levantara-se em direção à porta de saída. A essa altura, Uirá utiliza-se do codinome URO para representar essa nova senda artística: as trilhas para poemas.
Ainda sobre o primeiro disco, ele nos conta: “Tem algo que gosto muito nele… próprio de quem é jovem e tem ousadia e sabe lidar bem com a sua ignorância” (risos). A trilha tem como efeitos desdobramentos de sua própria voz e de Marcelo Bittencourt e alguns samplers, além dos poemas recitados. Um álbum experimental de quem se lança em novos desafios para a palavra e para a música. Criando uma pra outra, mas para que possam existir juntas. Afirma Uirá: “Não uso a lógica da música para poema, mas sim da poesia sonora”.
‘Poema Fragor para o Amor do Rapaz’, faixa desse primeiro disco, é uma trilha simbólica, porque foi a primeira a ser gravada em casa, com equipamentos rústicos e marcou a possibilidade de fazer ele mesmo suas trilhas, já que, antes, para acompanhar seus poemas, se utilizava de trabalhos de outros artistas. Outra questão era poder ali falar das coisas que o tocam: sexo sujo, amor violento, homossexualidade… “o amor e tudo que ele traz”, posto em um álbum próprio.
“Sabia ser possível gravar poesia e ter um registro que não somente a literatura em papel ou a leitura efêmera. E rolou esse negocio de poder gravar em casa… porque gravar um disco nunca iria acontecer, mas em casa era possível… Poema com trilha… é um poema que é música também”.
Para falar sobre esse desejo do poema e trilha, busca Uirá, na memória e na caixa de coleção de vinis ali ao nosso lado, alguns discos de artistas lendo poemas com suas próprias vozes e que ele escutava desde a juventude. Vinis como os de poemas de Carlos Drummond de Andrade, Jim Morrison e outros. Claro, também pelo fato de gostar de ler e escrever desde criança.
Ressalta ainda Uirá que, nesse início, quem abriu caminho para música experimental em Fortaleza foi a banda Cidadão Instigado com o lançamento do seu primeiro EP, homônimo, realizado em modelo de pré-venda, elevando a música experimental a outro patamar. Não que em Fortaleza não houvesse a experimentalidade com outras bandas e suas guitarras distorcidas e efeitos, ou ainda, o interesse nesse campo, mas de fato Cidadão Instigado, segundo Uirá, mostrou que era possível gravar música experimental e extrair dela o melhor.
Juntou-se aí, para Uirá, a possibilidade de gravar, em casa, suas próprias músicas/trilhas. E assim surge o ‘Projeto URO’ com o lançamento do segundo álbum, ‘Lamentos do Mucuripe’, de 2002, onde fica claro o maior interesse em eletrônicos e batidas e com a ideia genial de fazer as pessoas dançarem poesia. Algumas faixas desse disco podem ser ouvidas aqui:
Já ‘Maledicências’, disco de 2003, é uma coletânea de poesias sonoras com vários artistas: Gil Duarte, Anômalos do Câncer, Mardônio França e outros. Artistas que, naquele tempo, consolidavam seus trabalhos em diversas artes também, como música, vídeo-poemas, videoinstalações e literatura.
Ainda em 2003, o selo que o ‘Projeto URO’ assina troca de nome. Passa de ‘Funeral Produções’ para ‘Suburbana Co.’. A Suburbana, nos explica Uirá, é um selo e uma editora. No atual momento, lança seu livro ‘Magma Obtuso’. E no Bandcamp tem mais de 30 discos lançados com artistas, em sua maioria de Fortaleza, mas que também congrega pessoas de outros lugares do país. “Esses trabalhos coletivos com a Suburbana me deixam muito feliz, porque me sinto menos só… com pessoas que também estão fazendo música experimental em Fortaleza e outras cidades”.
Em 2004, assina a produção musical com samplers e batidas no álbum ‘Gravidade do Som’, com poemas de Ayla Andrade. Escute a faixa ‘Segunda-feira’.
Também em 2004 compõe ‘Per Aspera ad Astra’ para uma exposição de arte chamada ‘Experimental II’, no MAC do Dragão do Mar, mas não o lança. Decide dar um tempo nos trabalhos musicais para se aprofundar em estudos sobre música e composições. “Entrei muito fundo, fundo, fundo no mundo da música e percebi que não sabia de nada de música e resolvi estudar. Passei 4 anos sem lançar nada, mas sempre compondo e escrevendo… Estudando e tentando fazer músicas convencionais… e fazendo músicas horrorosas (risos)… mas joguei todas foras… eram somente estudos.”
‘URO’, de 2008, retoma as composições musicais, chegando com certa tristeza, com repetições minimalistas, mas que, segundo ele, “as coisas pareciam mais no lugar”. A tentativa de fazer músicas mais convencionais, mas ainda experimentais, parece ter tido sucesso. O disco é mais fluído, com sequências harmônicas e talvez mais próximo do que desejava quando se dedicou aos estudos em 2004.
Uirá dos Reis é autodidata, como se denomina. E estuda com interesse profundo aquilo de fato o interessa. Foi assim com a poesia sonora, para a qual dedicou alguns anos de experimentação. A música do século XX, a paisagem poética, a música concebida através do computador e seus programas de edição, até chegar no audiovisual e cinema, com curtas-metragens e longas, como o premiado ‘Doce Amianto’.
Isso pode ser observado, também, no vídeo experimental ‘Sensum at Practicum/No Practice’, de 2009. Aqui Uirá diz recriar a estética da sua própria poesia, agora sem o uso da palavra, buscando outra atmosfera para a poesia sonora, alcançando outros lugares e estilos. Agora misturava sonoridade, imagem e poesia.
De 2007 a 2009, Uirá integra a banda Mirella Hipster, que era composta por um filósofo (Eduardo Scarpinelli), dois cineastas (os gêmeos Luiz e Ricardo Pretti) e Uirá dos Reis. Aliás, foi também com Luiz Pretti que Uirá recebeu, em 2010, prêmio de melhor trilha sonora no Cine Ceará daquele ano, pelo filme ‘Estrada para Ythaca’.
Em 2011, lança o disco ‘Refugo’, feito para Marcelo Bittencourt, amigo íntimo, também escritor e militante das artes, uma das primeiras pessoas que Uirá conheceu em Fortaleza, quando chegou do Rio de Janeiro. A música ‘Refugo’ pode ser ouvida nessa coletânea:
Na mesma época, escreve o ‘Magma Obtuso’, porém, pelas condições do momento, em relação a morte de Marcelo Bittencourt, não se sente à vontade e com coragem para lançar. O livro se desdobra em roteiro de filme, como quem desdobra o coração para caber as dores. De acordo com Uirá, o roteiro do filme e o próprio foram feitos pra rir de sua cara, para dar leveza a dor e ajudar a superar a angústia da perda. Assim nasceu ‘Doce Amianto’, que conta com trilha original dele e de outros músicos, como Chinfrapala e Astronauta Marinho. Ressalta Uirá que o disco ‘URO’, o livro ‘Magma Obtuso’ e o filme ‘Doce Amianto’ são todos dedicados a Marcelo Bittencourt.
É certo que Uirá é um artista denso, dinâmico e non stoppable. Mesmo nas adversidades, no bar mais sujo, entre os muitos artistas da cidade está sempre criando, discutindo e revivendo a arte. Nesse texto apenas apresentamos alguns trabalhos, nem damos conta de toda a produção que ele nos apresenta.
Hoje, fazendo um balanço de sua carreira, ele pontua que “nem toda vaia é uma vaia e nem todo aplauso é um aplauso” e que, em termos de música, sempre achou que as pessoas não iriam gostar da experimentalidade e decidiu não se importar com isso. “Gosto da ideia de ser livre, sem pensar em mercado. Sou artista independente, ninguém está me bancando.. não tenho mercado, então deixo isso pra quem tem mercado”.
De acordo com ele, inclusive, sua melhor apresentação foi para um público de somente duas pessoas, em Fortaleza, intitulada ‘Solitaire’. Nada mais irônico.
“Acho que as pessoas estão mais abertas, tem uma juventude fazendo e consumindo e há interesses técnicos de como faço. Gosto de quando as pessoas gostam e mesmo quando elas não gostam, mas que seja pelos motivos certos… hoje as coisas são mais claras e me sinto mais à vontade, sei lidar com o público, mesmo com o público não gostando. Hoje estou com o grupo ADSR, participando com eles no palco, fazendo coisas diferentes entre a gente e, dividir palco, é uma coisa maravilhosa”.
Na música, Uirá também contribuiu com composições para diversos artistas. Para o disco de Soledad Brandão, por exemplo, fez ‘Portentosa’. Atualmente, tem, entre os recentes trabalhos, o livro lançado em PDF ‘Ruins’ e um disco pensado para esse livro, mas que ainda está em processo. Livro esse que, conforme Uirá, demonstra uma vontade maior de pensar a vida, as pessoas, com preocupações mais filosóficas e de não se sentir, por ora, apartado do mundo. Brinca, que neste ano 2017, foi a primeira vez que de fato esteve presente no Carnaval de Fortaleza, se divertindo, desfrutando e… gostando. Conta que ligou para uma amiga, na quarta-feira de cinzas, sofrendo, pra dizer “então é verdade… a gente fica triste na quarta-feira de cinzas quando o carnaval acaba”.
Já no livro ‘Magma Obtuso’, que neste momento está fase de captação de recursos pelo Catarse, o processo de construção foi outro, isolado de tudo, escrevendo por 8 meses, em um quarto, bebendo e chorando: “Escrevi muito triste, muito fudido…”. Assim, o ‘Magma Obtuso’ tornou-se uma expressão do momento de “olhar pra trás, para os anos 90, para a adolescência com o Marcelo… e o livro é feito pra ele… Nossa experiências juntos”.
Ainda sobre o livro, Uirá revela: “…eu me sinto muito nu com ele… é muito difícil falar quando você ainda está sofrendo, mas agora os fantasmas estão mais ou menos no lugar certo e eu soube que podia lançá-lo quando o reli e não chorei”.
Nos conta que, quando da feitura do livro, ainda em 2011, teve problemas em lidar com a obra e o seu pesar posto em palavras. Em sendo lançado, teria que lidar com ele, com as pessoas perguntando do livro, dos poemas, lendo-os. E não queria, naquele momento, falar sobre ele. “Se ninguém falasse comigo sobre ele…”(risos), completa Uirá.
Mas, passado todo esse tempo, mais ainda a partir de 2015, Uirá vem trabalhando para lançar este que será seu quinto livro, o terceiro impresso. Muito embora seja um livro considerado pequeno pelo autor, ele nos relata que deu muito trabalho, exigiu muito esforço de superação e que, sim, agora está pronto para ser lançado.
O livro traz duas orelhas assinadas por duas amigas queridas escritoras, Ayla Andrade e Natércia Pontes. “Decidi manter os poemas entre as duas para me sentir protegido por elas, por sua força e iluminação, diz. O restante da equipe é também feito de pessoas queridas, amigos de longa data, todos artistas de destaque em suas áreas. Ylo Barroso Fraga, poeta, assina a revisão junto com o autor. Jorge Polo, cineasta, desenhista e ilustrador, assina a capa e a contracapa, sendo que a primeira foi criada a partir de uma foto do fotógrafo e performer Victor de Castro. As ilustrações do miolo são do próprio Uirá.
“Foi um peso que durante um tempo me ocupou e quase paro de escrever poesia…”
Para o nosso deleite ele não parou, assim como esse texto parece não ter fim, tamanha é a disposição para produzir e para falar de Uirá dos Reis.