Uma Picada de Nostalgia

Quando foi anunciada a 4ª Edição do Festival Fortaleza Cidade Marginal, no Casarão Benfica, entre suas atrações chamou a atenção de todos o nome de uma “banda surpresa”: Zé Agulha e os Garotos Paregóricos. Quem seria essa galera, cujo nome remonta ao uso de opiáceos injetáveis (em geral retirados de remédios para dor de barriga furtados de farmácias), tão comuns em determinada época? Além disso, essa edição do Marginal prometia ser especial, uma celebração às gerações marginalizadas de Fortaleza. Bandas novas e com uma sonoridade bem diferente, como Lascaux, Alguns Bocados e Glamourins, dividiram o palco com figuras históricas de nossa cena alternativa, como Velouria e os Implicantes, em sua homenagem aos punks dos 80’s.

Este slideshow necessita de JavaScript.

O Festival Fortaleza Cidade Marginal, idealizado por Jonnata Doll e produzido por ele e André Moura, se propõe a recuperar o clima de antigos festivais que ocorriam em galpões nossa cidade, com bandas se revezando e preços acessíveis. Ele tem a música como elemento central, funcionando como um gatilho para outras formas de arte, como poesia, dança, teatro, quadrinhos etc. É um espaço onde a galera do underground pode expor suas ideias, onde os marginais podem se encontrar e perceber que não estão sozinhos. Segunda Jonnata, “eu queria fazer um festival tipo os que existiam quando eu comecei com a Kohbaia, como o ForCaos, que eram várias bandas em uma noite, tocando meia hora, som autoral. Pode-se dizer que é um resgate do que eu vivi na época da Kohbaia”.

Fortaleza amanheceu sob forte chuva no domingo, 8 de janeiro de 2017. Chuva que inundou o Casarão Benfica e gerou dúvidas sobre a realização do Festival. Mas não seria um pequeno dilúvio que iria impedir esse encontro de artes e personalidades tão diversas. A chuva acabou sendo mais uma história para ser lembrada nos papos de mesa de bar sobre esse dia. No momento em que a banda Alguns Bocados subiu ao palco e seus primeiros acordes soaram, qualquer nuvem negra de pessimismo se dispersou. Nem a chuva resiste à força do rock. Edson Van Gogh (guitarra), Eric Lennon (baixo) e Rony Duarte (bateria) derramaram na plateia um som com uma forte influência oitentista.

Este slideshow necessita de JavaScript.

“Tocamos em outras bandas que não tem essa verve 80 tão aflorada assim. Mas pra banda resolvemos fazer essa coisa bem oitentista. É de propósito, na verdade. É a busca da gente”, declarou Edson. Alguns Bocados é uma banda de amigos que tocam ou tocaram em outras bandas da nossa cena alternativa, muitos cresceram na Barra do Ceará, bairro com enorme tradição roqueira. Apesar de terem se apresentado no Marginal no formato power trio, também tocam com eles o guitarrista Victor Hugo e a tecladista Samara Sampaio. Talvez pela ausência desses últimos, o baixo de Eric estava bem à frente e Van Gogh abusou nos efeitos em sua guitarra. Aliás, Eric e Van Gogh demonstraram muito entrosamento no palco, realizando uma dança sincronizada com seus corpos e seus instrumentos, mostrando toda a sinceridade na frase proferida pelo próprio Edson “a gente não vive de música, a gente vive pra música”.

Dando sequência ao Marginal, Oco do Mundo apresenta seu rock de calçada. Timbres pop, como rock e reggae, conectados à ritmos tradicionais ligados a cultura popular. Maracatu + ciranda + coco + teatro + brega + reggae + rock + tambores + guitarra violada + integração com o público em coros e rodas. Isso é o Oco do Mundo. Talvez ainda falte algo. Mas para uma banda com 6 integrantes (Anderson Oliveira, Sivirino de Caju, Delvanio Ócio, Diones Mendes, Eden Loro, Djaci José), tantas influências são justificáveis. A banda faz um som gostoso de se ouvir e se encaixa perfeitamente na proposta de diversidade do Marginal.

Este slideshow necessita de JavaScript.

“O nosso som é marginal porque ele dialoga com a cidade, mas não está se apartando da periferia, onde as manifestações mais populares ainda estão no cotidiano das pessoas… e de certo modo a gente se marginaliza a todo momento, a gente vem tocar de bike, trazendo instrumentos, a gente tem outras práticas de relação com terra, o que acaba sendo um outro diálogo marginalizado dentro da cidade, dentro dos rótulos, do que é rock ou não é. A nossa roda de rock é a mesma de maracatu ou de capoeira ou mesmo de samba”. Assistindo a apresentação do Oco, compreendemos a ideia de rock de calçada que eles propõem. “Até a aplicação de alguns instrumentos… você não faz um rock de calçada levando uma bateria nas costas, aí a gente utilizava outros instrumentos que dava pra colocar dentro do bolso, como um pandeiro que dá pra impindurar na cintura ou trianguinho que dá pra levar em qualquer canto, dentro do bolso, dentro da mochila”. Oco do Mundo faz um show delicioso, mostrando que o ser marginal tem várias faces.

Vitor Colares faz um show com muito experimentalismo. Sozinho no palco com sua guitarra e suas distorções, ele já consegue impressionar o público marginal. Com a companhia do solvente Léo Breedlove e a performance de Marcelle Louzada, ele vai além e faz uma apresentações das mais piradas do Cidade Marginal. “Esse show de hoje foi o processo para o disco”, afirma Vitor, que lança no início de 2017 o álbum ‘Eu entendo a noite como um oceano que banha de sombras o mundo de sol‘. “Eu tocava com uma galera, mas resolvi gravar o disco sem a banda. Então eu passei quase um ano fazendo apresentações sozinho, que foi de onde saiu esse show”.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Mais uma vez, o Fortaleza Marginal mostra que é um festival onde vários sons se unem confluindo um baque, uma sensação de êxtase aos presentes. “Eu fico mais interessado em tocar em um festival assim. Quando fui convidado, pensei é tudo tão variado, vai ter umas performances, vai ter cara lendo poesia, então vou fazer essa parada minha sozinha, porque leva pra outro lugar e tem espaço. Eu acho massa, eu gosto de me ver nesses lugares”, finaliza Vitor.

Em 1992, no bairro do Benfica, poderíamos escutar um som alternativo no Qualquer Coisa Bar. Avançando nessa década, bastava ir ao Cidadão do Mundo, na Av. da Universidade, para escutar bandas seminais para a formação da cena marginal de Fortaleza, como Velouria e Dago Red. E eis que em 2017 somos premiados com um reencontro da Velouria no Cidade Marginal. No palco, Régis Damasceno (guitarra e vocais), Roberto Damasceno (baixo), Júnior (bateria) e Robério Sacramento (guitarra), da Dago Red, substituindo o guitarrista Eduardo Vinícius. Músicos que fizeram parte de uma geração que abriu caminhos na cidade.

Robério diz que “naquela época, estava tudo se construindo, se hoje a gente tem toda essa estrutura… na época não tinha muita coisa, a gente fazia o que podia. Nesse tipo de som que a gente faz, nós fomos pioneiros mesmo… a Dago Red foi pintando, a Velouria, e as duas bandas foram começando a fazer show e as pessoas que foram para esses primeiros shows foram formando bandas”. Época essa em que os poucos espaços precisavam ser ocupados. Velouria e Dago Red, por exemplo, participaram com faixas para uma coletânea de bandas locais, chamada Projeto Mythus, contando com várias bandas de metal e algumas de rock progressivo.

Este slideshow necessita de JavaScript.

“Bandas como a nossa, a do Robério…tinham que tocar junto com as bandas de metal. Era o que a gente fazia. Quando tinha um festival, que alguém chamava, a gente tocava antes…”, lembra Régis. Foi um show emocionante, especialmente para os frequentadores daquela cena em particular. Um clima de nostalgia tomou conta do Casarão. O som da Velouria contagia de tal forma que, lado a lado, vemos turmas de épocas diferentes curtindo o show, marginais mais antigos dançando como se estivessem nos anos 90 e jovens marginais como se estivessem acompanhando uma banda contemporânea.

Há 26 anos morria Dedé Podre, ícone do movimento punk nos anos 80, em Fortaleza. Para rememorar essa data, foi lançado o documentário ‘Tudo que é Belo é Podre‘, um verdadeiro tributo ao movimento punk da época. Como segundo ato dessa celebração, show com a banda Os Implicantes, formada por ex-integrantes de históricas bandas punk cearenses, tocando suas músicas da época, a maioria nunca antes gravadas. Flor Fontenele (Resistência Desarmada – primeira banda punk feminina cearense – e HLV3+), Simão (Repressão X), Jorge AP (HLV3+), Jomar Hendrix (HLV3+) e Jorge Pixote (Estado Mórbido) se uniram e levaram ao palco o que, segundo a banda Maldito Remanis, foi “uma aula de punk rock”.

E o show deles parece ser apenas uma continuidade do que a galera já fazia há 30 anos, com tanta energia quanto. A impressão é de uma apresentação absolutamente passional, mas que não era voltada apenas para seu próprio grupo. Nas palavras do guitarrista Simão, “o que importa mesmo do artista é o carisma. Você sobe no palco e está tocando para um monte de jovem. As pessoas vieram para ver seu show, então você deve dar o máximo de você e é isso que a gente faz”.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Além disso, Flor diz que viveu “um momento singular, um momento forte na nossa vida, eu desci do palco aos prantos”. Alexandre Gato, skatista veterano, também precursor do movimento na cidade, e que no palco fez uma participação especialíssima, tocando um solo no estilo air guitar no skate, lembra que a palavra de ordem sempre foi ‘Liberdade’: “Aquilo que a gente viveu ninguém mais vai viver. Por mais que alguém queira apagar nossa história com uma borracha, jamais vai conseguir”. E apesar das dificuldades da época, Jomar Hendrix recorda: “A gente tocava pra caralho, da periferia à burguesia, tinha essa não. Conjunto Ceará à Aldeota e o caralho. Agora era muito dificultoso, era batalha, mas a gente tocava pra caralho”.

Enquanto os Implicantes inundavam o Casarão com seu som poderoso, imagens de reuniões, curtições, shows e movimentações dos punks registradas em fotos únicas eram projetadas. Flor Fontenele avisa que para “quem ficou de olho, escutando as músicas, foi uma viagem no tempo, porque as imagens são da mesma época das músicas”. Imagens que estão no documentário ‘Tudo que é Belo é Podre’ e que também foram utilizadas pelos Garotos Solventes no clip ‘O Mundo está Contra Nós’. “Foi uma troca. Usamos eles no clip da gente, depois eles tocaram aqui e me chamaram pra tocar… realmente cara, isso é muito foda. Eu não esperava essa troca”, comentou um surpreso Jonnata.

Da parte da Flor, essa troca pode avançar ainda mais, pois a última música que Os Implicantes tocaram era inédita nos palcos. Flor revela: “Eu fiz essa música a partir do texto que o Jonnata publicou falando sobre a ansiedade de nos ver tocando e na descrição que ele fazia que nosso som era Ramoníaco”. Assim surgiu ‘Balada na Cara’, “com o tema preferido dos Ramones, o amor, mas a história de um amor underground, um misto de amor e ódio”. Em sua última frase no palco, Flor solta: “Jonnata Doll, eu fiz essa música pra você. Se você quiser, essa música é sua”. Será que escutaremos ‘Balada na Cara’ na próxima edição do Marginal?

Este slideshow necessita de JavaScript.

Para manter a chama do punk rock acesa, eis que sobe ao palco Zé Agulha e os Garotos Paregóricos, ou melhor, Jonnata Doll e os Garotos Solventes. Isso mesmo, a tal surpresa era, na verdade, a grande atração do Cidade Marginal, que havia lançado seu segundo disco, Crocodilo, há poucos dias. A realização do evento sempre casa com a presença de Jonnata em Fortaleza e dessa vez acompanhado por toda sua banda, que aliás sofreu algumas alterações em sua formação. Além das guitarras de Edson Van Gogh e Léo Breedlove, novos solventes foram recrutados: Felipe Maia para a bateria e Joaquim Loiro Sujo no baixo. A apresentação do Solventes não perdeu força com as mudanças na banda. Ao contrário, eles mostraram estar bem afiados e, claro, sentindo-se em casa, tocando para o público de sua cidade natal, especialmente para a turma que frequenta o Casarão Benfica e outros espaços que promovem bandas para apreciadores do som marginal.

Quem achou que o show seria menos vibrante graças às baladas presentes em seu mais recente trabalho. se decepcionou, ou melhor, se surpreendeu positivamente ao perceber como as músicas funcionam muito bem no palco. Um repertório calcado nas principais composições do primeiro e do segundo disco para garantir a alegria da galera presente. E com direito a um bônus, já que a música ‘Sangria’ ainda não foi lançada oficialmente.

A participação dos Solventes no Marginal contou com alguns picos de efervescência. Um deles foi a subida ao palco da Tia Zú, umas das influências de Jonnata na juventude (especialmente no que se refere a sua forma de dançar) para declamar com muita propriedade, cantar e dançar com ele em ‘A Rua de Trás’. Tia Zú, inclusive, já havia participado dos videoclipes das músicas ‘A Rua de Trás’ e ‘Esqueleto’, esse último roteirizado e dirigido por André Moura, coprodutor do Fortaleza Cidade Marginal.

Durante toda a insanidade que Jonnata mostra quando está com o microfone na mão (entre outros lugares), é comum seus mergulhos do palco. E dessa vez, além dele, curiosamente apenas garotas estavam praticando o mosh a partir do baixo palco do Casarão Benfica. E no momento em que os Paregóricos Solventes atacam de Crocodilo, salta do palco Flor Punk, para delírio da galera que a recebeu em suas mãos.

Jonnata possui poucos parceiros em suas composições, mas um deles, Saulo Leandro (em Crocodilo creditado como Slean) esteve presente no Marginal e teve o prazer de escutar as três músicas que compôs com Jonnata: ‘Garotos Solventes’, do primeiro disco, ‘Crocodilo’ e ‘Por uma Dose de Amor’, do segundo disco. Essa última, composta ainda na época da Kohbaia, traz em sua letra a tríade sexo, drogas e punk rock. “Sua vida era tão normal, seu namorado tão igual e uma droga pesada realmente lhe faz falta… Ninguém tem mais saco de procurar, suas veias finas podem inflamar, sua lama é muito chata de filtrar… Fale mais alto, enxugue suas lágrimas, aqui ninguém se comove mais, troque por uma pedra o seu coração! Eu não deixo mais a minha lama pra você!”. Paregórico? Solvente? Marginal!!!!!

Entre uma banda e outra, o microfone era aberto. Augusto Azevedo, Ayla Andrade, o pessoal do Baticum Provocações, dentre outros, mandaram suas poesias para o deleite de quem lá estava. Performances com Andreia Pires e Marcelle Louzada também se destacaram. E em um desses momentos, sobe ao palco a galera de um novo projeto: Glamourings. Com uma performance que pode lembrar o filme cult ‘The Rock Horror Picture Show’, mais arranjos vocais elaborados e sons experimentais, eles apresentaram seu ‘Vampiro Sexual’. E arrasaram. Infelizmente não puderam executar outra música, pois o tempo reservado às performances era reduzido, comparado ao das bandas. Ainda assim, foram ovacionados. Quem sabe em um próximo evento curtiremos uma apresentação completa do Glamourings.

A banda Lascaux é formada por algumas figurinhas carimbadas da cena musical marginal de Fortaleza. Todos eles participam (ou participaram) de bandas que fizeram a cabeça da galera em algum momento. Eric Lennon (Alguns Bocados e ex-Bonecas da Barra) no baixo, Rony Duarte (Ouse e ex-Volúpia e Garotos Solventes) na bateria, Samuel de Melo (ex-Granja Mofada) na guitarra, Lua Underwood (New Model) no sintetizador e George Alexandre (ex-Januei) no vocal formam a Lascaux. Influências de Glam Rock, New Wave e Synth Rock são percebidos em sua apresentação.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Para encerrar a noite, Malditos Remanis com seu punk já rodado no circuito. Com muita força e energia os caras já encaram 10 anos de estrada. José Jordano nos vocais, Jean Rodrigues e sua inconfundível máscara do Jason na guitarra, Atila Cavalcante no baixo e Henrique Marques na bateria fazem um show em que os fãs do autêntico punk rock não ficam parados um único instante. Postura política, mas também com algumas letras descontraídas, que também podem ser conferidas em seu disco, ‘Proibido Nesse Local‘. Malditos, marginais e punks.

Mais um vez o Cidade Marginal mostra que a juventude marginalizada é capaz sim de dar uma resposta através da arte para uma sociedade opressora. Juventude que deseja sim diversão. Mas que também deseja oportunidade de crescer e de mostrar que tem algo a dizer. Enquanto isso, continuamos marginais.

 

Outros vídeos do 4º Festival Fortaleza Marginal também podem ser conferidos no canal do Sapoti Soundz.

3 comentários em “Uma Picada de Nostalgia

Deixe uma resposta