Em alguns momentos da história humana, bolas de fogo cruzam nosso céus deixando um rastro lindo e inconfundível e finaliza sua entrada triunfal na Terra com uma explosão fenomenal. É um bólido, cuja origem pode ser de um asteróide ou de um cometa. Em meados de janeiro, Sapoti Soundz conversou e conferiu ao vivo a apresentação de um bólido, mas de origem musical: Di Melo. Conversa, porque Di Melo não dá entrevista, ele encanta e seduz seus interlocutores. Assim como em seu show, durante esse bate-papo ele canta, recita, dialoga com o ambiente ao seu redor, improvisa e mostra toda sua desenvoltura de artista, ou melhor, de arteiro, como ele mesmo se define.
Sua apresentação fez parte da programação de férias em Fortaleza. No repertório, as principais faixas dos discos Di Melo (1975) e Imorrível (2016) seus principais trabalhos. Principais, porque engana-se quem acha que sua produção musical para por aí. Di melo possui mais de 400 músicas compostas e cerca de 100 gravadas, por ele e por vários ícones da música brasileira, como Wando, Jair Rodrigues e Waldonys. Na ausência de apoio e de mídia, ele mesmo compilou cerca de 10 CDs que são vendidos em seus shows. São gravações menos elaboradas que as dos dois discos que dão origem ao show, mas que impressionam pela criatividade e confirmam a atividade de Di Melo nesse período. “Nunca parei, eu saí de cena”.
Seu primeiro disco, lançado há mais de 40 anos, hoje é cultuado pela juventude que agita as pistas de dança mundo afora. Mas nem sempre foi assim. Na época do lançamento o disco vendeu bem, Di Melo tocava em rádios e foi gravado por artistas que venderam muito. “Kilariô deu um disparo, era uma coisa descomunal. Ao mesmo tempo, tinha uma música no disco do Wando, ainda assinada como Bob d’Melo, que vendeu que nem banana em feira. No disco de Jair Rodrigues havia uma música minha e de Olmir Stocker. Quando fui receber diretos autorias, tinha 11 cruzeiros”. A partir de situações assim, Di Melo se desestimulou, não lutou pelos direitos e foi sendo esquecido pelo grande público. “Maravilhoso é você fazer o seu trabalho e conseguir sobreviver com ele. Se eu tivesse a cabeça que eu tenho hoje, eu iria brigar, levantar, questionar. Mas na época era muito moleque, dei logo uns quebra-quebra, pirei de vez. Fui de 8 à 800 no espaço de segundos, feito um bólido, que você liga, acelera e dispara”.
No início dos anos 2000, os holofotes se voltam mais uma vez para Di Melo. Músicas como ‘Kilariô’, ‘A Vida em seus Métodos Diz Calma’ e ‘Se o Mundo Acabasse em Mel’ começaram a ser bem tocadas. E seu disco volta à evidência. Difícil era encontrá-lo nos sebos e lojas especializadas brasileiras. As últimas cópias estavam em mãos estrangeiras, sendo vendidas a peso de ouro. O próprio Di Melo encomenda então uma nova prensagem. Mas a sina do disco parece ser realmente de dissabor. Mesmo a reedição, hoje é bem difícil de ser encontrada por aqui. Mais uma vez passaram a perna em Di Melo. “A gente fez esse disco na gringa, na república tcheca, pagamos 250 cópias e o cara na realidade trouxe 100 e o resto o cara colocou na era do esquecimento. A primeira letra do nome dele é José Clênio Lemos. É ladro. Imagina a grana que rendeu esse disco espalhado pelo mundo”.
Dois fatores alteraram a trajetória dimelística. O primeiro é o excelente documentário ‘Di Melo, O Imorrível’, dos realizadores Alan Oliveira e Rubens Pássaro, que impulsionou muito seu contato com uma nova geração. O segundo, talvez mais importante, foi a estrutura familiar criada com Jô Abade, hoje responsável por sua agenda e que gerencia sua carreira. Jô ajudou a organizar e dar um rumo (relativamente) reto à sua carreira pensa e torta. A história de Di Melo lembra um trecho de sua música ‘Aceitar Tudo‘: “Aí eu pensei que ia indo, caminhando, mas não fui, para um sonho diferente que se realiza e reproduz. E pensando fui seguindo num caminho estreito cheio de toco. Esqueci de lembrar, de pensar, todo penso é torto. Já estou ficando embaraçado vendo lado todo errado…”.
Quando Di Melo recebeu Sapoti Soundz para essa conversa, ele vestia uma camiseta estampada com a capa do disco ‘Ainda Há Tempo’, do Criolo. E ele mostra uma boa relação com essa galera mais jovem. Em ‘Imorrível’ há participação de Larissa Luz na faixa ‘Milagre’, e de B. Negão em ‘Diuturno’, música que conta com um clima space rock, parecido com alguns sons experimentais feitos pelos Seletores de Frequência. “Eu escuto tudo, Rael, Emicida, Rashid, inclusive fiz uma parceria no disco do Rashid, está lindo pra caramba. Eu me dou bem com tudo e todos. Eu acho que o som é uma coisa atemporal. A linguagem sonora e a linguagem do amor são universais. Minha música é atemporal”.
Mas para ‘Imorrível’, antigos parceiros foram lembrados, e renderam histórias preciosas. Com Geraldo Vandré, entrou no disco a faixa ‘Canta Maltina & Chacacalaio’, na verdade uma fusão de duas músicas. Ainda permanecem inéditas mais 12 faixas da dupla. “Eu larguei meio que tudo para sair de andada com o Vandré mediante essa história desse desapontamento”. Rodaram Norte, Nordeste e foram bater em Foz do Iguaçu para um show. Chegaram a gravar um disco, na Paraíba, que ficou perdido pelo caminho. Se desentenderam. “Teve até uma história de vir com ele em um Maverick, em cima de uma cegonha, da Paraíba pra São Paulo. Foram quinze dias de viagem, maior doideira. Vandré não aguentou, pegou um avião e veio embora. Eu prossegui na armação com o motorista que sabia tudo, todos os buracos, todas as bibocas, de viola em punho… daria um filme”. Di Melo também conta que tem uma música inédita com Baden Powell. No ‘Imorrível’, há uma homenagem à Baden, o samba rock ‘Basta nem Pensar’. “Baden Powell é uma escola de vida, um aprendizado eterno. Eu trouxe um colar maravilhoso do Japão para uma namorada que eu tinha na época. Ele viu o colar e os olhos dele saltaram da órbita. A ideia dele era fazer minha cabeça para tomar aquele colar e dar de presente pra namorada dele. Você tinha quer ver os artifícios, as armações, os quas quas quas dele. Pois 5 ou 6 horas da manhã, estávamos lá gritando por ela. Eu já tinha cedido, mas ele teve que arriar na minha cabeça”.
‘Barulho de Fafá’ é uma música preparada pra pista. “Eu fiz para uma bailarina e pianista clássica do Rio de Janeiro. Pra mim a música, além de experiência, é o gostar, e o gostar não se explica, simplesmente se aplica”. Na mesma linha, ‘Multicheiro’, muito dançante, não deixa ninguém ficar parado. “Essa música tem sacadas e tiradas do dia a dia. Meu som é muito isso, é mar, é terra, é ar, é o dia a dia, é o confabular, coisas que as pessoas sentem e não tem a capacidade, às vezes, de expressar”.
A apresentação que vimos de Di Melo contou com sua atual banda, que aliás participa ativamente de todo o processo de produção do disco ‘Imorrível’. Pedro Diniz – que toca na banda – produziu e fez arranjos de sopro. “Essa capa foi feita por Ganja Pessoa, artista plástico de Pernambuco. Ele fez essa capa em preto e branco, e esse colorir foi dado pelo Rafa, que é meu baterista, conterrâneo”. O show mostra perfeitamente esse entrosamento com a banda. “As pedras se encontram, é uma dádiva divinal. Esse disco virou um disco iluminado. Houve uma preocupação de fazer a coisa da melhor forma possível. Estou feliz, em minha melhor fase. Está sendo com um prêmio de vida”. Sentimos essa felicidade radiante no palco. Um bólido que cruzou os céus de Fortaleza e explodiu no palco em frente ao mar de Iracema. Empolgou e cativou o público.
Haverá outro disco em breve? O que fazer agora? “Nada por fazer, só pelo prazer, tudo é tempado, tudo é datado. Nada acontece por acaso”. Entendeu o dialeto dimelístico? Bem, o certo é que ele continuará fazendo shows pelo país, levando seu entusiasmo e groove. Mas Di Melo, como arteiro que é, não estaciona apenas na produção musical. Está compilada uma coleção de textos em prosa e verso, que ele pretende lançar em dois livros: ‘O Bicho Voador’ e ‘A Minicrônica da Mulher-Instrumento’. Não sabemos como será a (incrível) capa do livro, mas ele nos recitou sua primeira página, em primeira mão.
Excelente matéria, compartilhei com alguns amigos queridos . Massa moçada do Sapoti Soundz , sou fã do trabalho de vcs. Tanto nos pick ups como nas coberturas dos eventos musicais. Desfrute total.