Soledad, arrepios, calor e desordem

“Eu fiz dança, eu fiz teatro, eu fiz um monte de coisa desde pequena e a música foi o único lugar que eu senti que estava me tocando muito, muito, muito profundamente, mais do que tudo que eu tinha feito. Se eu não fizer, eu morro, porque eu preciso da música para eu ficar bem, para eu existir. Não é só me comunicar, é existir”. Soledad Brandão (ou simplesmente Sol) inicia a conversa com Sapoti Soundz com essa declaração de amor à música, ao mesmo tempo que assume sua dependência quase patológica em relação aos palcos. “A música é muito significativa pra mim. Pra eu poder ficar bem, eu preciso tocar. Se eu não toco, sou a pessoa mais insuportável e deprimida do mundo”, reafirma Sol.

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Nossa conversa ocorreu poucos dias antes do show de lançamento de seu primeiro disco, durante a programação de férias em Fortaleza. Para Sol, que está radicada em São Paulo há cerca de um ano e meio, fazer o primeiro show do novo trabalho em sua cidade, em sua casa, trouxe à tona sensações especiais. “Não consigo parar de pensar. São tantas imagens na minha cabeça, tantos sentimentos e energia, mais algumas emoções bem loucas e saudosistas. Tocar perto do mar nunca é tão simples, a gente vira onda…”, declarou após o show.

Seu disco, homônimo, está disponível para download nas plataformas de streaming (escute aqui), tendo sido lançado pela gravadora EAEO Records, onde ela já trabalhou como produtora e hoje é uma das artistas do selo, que abriga nomes como Cidadão Instigado e Jonnata Doll & Os Garotos Solventes. Sol faz parte de uma leva de músicos cearenses que estão formando uma cena interessante em São Paulo. A banda Cidadão Instigado, que migrou para o sudeste do país há quase duas décadas, abriu portas. “Os músicos cearenses são os músicos que estão tocando com todos, todo mundo só quer músico cearense na sua banda. O Ceará, e Fortaleza especialmente, virou a menina dos olhos da música, o que também ajuda a abrir portas aqui [em Fortaleza]. Produtores e artistas que vem de fora para cá, não passam incólumes. Eu sempre digo: a cidade vai te transformar”.

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Mesmo com esse movimento, a vida longe de suas origens físicas não é fácil. É verdade que Sol está ótima, linda e maravilhosa, realizando projetos que não conseguiu tocar para frente em Fortaleza, mas dificuldades existem. Falta de dinheiro, períodos com pouco trabalho disponível, saudades da família, dos amigos e dos próprios costumes de sua cidade mexem com ela. “Há também o reverso, a galera acha que porque estamos lá em São Paulo, estamos todos incríveis. E não é bem assim”. Mas pelo caminho trilhado até agora, apostamos que o reconhecimento deve chegar para Soledad em breve. Ao que parece, há uma busca para unir o potencial artístico e criativo dos músicos de Fortaleza com o potencial técnico e comercial da cidade de São Paulo. Sol, apesar de reconhecer que sua migração para outra sua cidade foi importante financeira e artisticamente, não quer se desligar de Fortaleza. “Me disseram que enquanto eu não me desconectar de Fortaleza, eu nunca vou conseguir viver em São Paulo. Meu irmão, eu nunca vou querer me desconectar de minha cidade, eu vou sempre querer estar conectada com Fortaleza”.

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Soledad se envolveu de tal forma com a produção desse trabalho que até os mínimos detalhes passaram por suas exigentes mãos. “Mas é claro que tinha que ser assim, é o meu trabalho, é o meu disco, é o que eu sinto. Como poderia entregar na mão de alguém? Eu não entendo, não compreendo as coisas dessa maneira”. Isso fica claro começando pela escolha das músicas que entraram no disco. “A seleção do repertório foi toda minha. Escolhi pensando em coisas que fossem sinceras comigo e ao mesmo tempo tinha um movimento político, um movimento do meu pertencimento da cidade, meu movimento enquanto mulher. E nisso tomei a decisão de trabalhar com músicas só de cearenses. Só tem uma música no meu disco que não é de um artista cearense”. Ela se refere a ‘Doce Amável’, música que trata de conflitos familiares, composta por Gui Amabis, tutor do seu projeto no Porto Iracema das Artes, que é uma escola de formação e criação artística em Fortaleza. “Todas as músicas que estão no disco tem um motivo muito pessoal e por mais que não tenham sido eu a pessoa que escreveu as músicas, eu considero elas minhas também, porque é o meu sentimento que está ali”. E é a plena verdade. Impossível escutar ‘Portentosa’ e não reconhecer traços de Soledad por toda a música. Parceria de Uirá dos Reis e Vitor Colares, essa é a que abre o disco. Uirá nos disse que escreveu várias letras especialmente para Sol e entregou para Vitor, que topou musicá-las. “Dessas letras saíram duas músicas, ‘Portentosa’ e ‘Amor Babuíno’, esta ainda inédita. Tudo dentro da letra é o que dizem as palavras. Não há mistério algum. Queria que a coisa fosse sexy, mas de modo que coubessem alguma melancolia e alguma tristeza dentro. Falava pro Vitor isso e ele, claro, captou os desejos e foi além. Adoro essa música”, declarou Uirá. “Uirá escreveu essa música com uma história minha, uma história que eu contei pra ele no Gato Preto [bar localizado em Fortaleza]. Portentosa é mais especial ainda porque é uma música que foi feita com a minha história, que outras pessoas deram a sua interpretação e que veio pra mim de volta para eu tomar posse da minha história de novo e colocar a música pra fora”.

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Vitor Colares está presente na composição de 4 músicas do disco, além de tocar guitarra, baixo, sintetizador e participar da produção colaborativa do disco com a própria Soledad, além de Bruno Rafael, Guilherme Mendonça e Felipe Lima. Vitor é considerado por Soledad como um dos músicos mais talentosos dessa geração. Uma de suas composições presentes no disco é a belíssima ‘Vermelho Azulzim’, que conta com uma interpretação de Sol capaz de fazer até as pedras chorarem. A letra é dele e de Juliane Peixoto. “Ela estava filmando no interior da Paraíba e rolou uma dessas luas especiais… super lua… ou lua azul, algo assim. Perguntei como tinha sido e ela respondeu ‘a lua do sertão, pra quem já viu… ilumina tudo, muito azul… nos cantos sem luz deixa tudo vermelho azulzim’. Aí eu disse que isso era letra de música e ela falou pra eu terminar a letra, então. Soledad, na primeira vez que ouviu, se emocionou… e quando estava no Porto Iracema sob a tutoria do Gui, eles sugeriram incluir a música no repertório, visando esse disco que agora saiu”, segundo Vitor.

De Daniel Groove, em parceria com Vitor Colares, ‘Jardim Suspenso’ é um dos pontos altos do disco. Uma música que cairia como uma bomba nos ouvidos de qualquer pessoa que estivesse curtindo uma fossa em um cabaré nos anos de 1950. Mas que ao mesmo tempo soa sofisticada, com uma guitarra solo perturbadora, tocada por Fernando Catatau.

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Representando uma geração anterior da música cearense, ‘Beco da Noite’, de Rodger Rogério e Pepe, é outra interpretação magistral de Sol, com um timbre grave que contrasta com a voz aguda de Teti na gravação original de 1974. Entre os versos da música, há samples do filme ‘Onze – A Maior Chacina da História do Ceará’, realizado em 2016 pelo coletivo Nigéria Filmes, que traz depoimentos chocantes de sobreviventes, parentes de vítimas e moradores dos bairros da Grande Messejana, onde ocorreu a chacina do Curió, em que 11 jovens foram executados por policiais militares. E, junto com o clima etéreo criado pela banda, é o grande diferencial dessa gravação, apresentando um posicionamento político forte e bem definido. Apesar de não estar presente fisicamente, Soledad não deixará de se envolver com os problemas sua cidade. “Hoje a gente está vivendo um momento que não tem mais espaço pra licença do artista. Se o artista trouxer uma música machista, por exemplo, a gente vai bater de frente. Pra mim a arte é política e ela nunca vai deixar de ser”.

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A arte do disco também indica como Soledad participou ativamente de todas as etapas de construção do trabalho. O Coletivo Ocupeacidade ficou responsável pelo design, enquanto as fotografias com Haroldo Saboia e Lia Damasceno. “Foi um processo incrível, a [produção da] arte do disco foi linda, eu conheci uma galera em São Paulo, um coletivo de artistas que se chama Ocupeacidade, e me conectei com Lia Damasceno e com Haroldo Saboia, o fotógrafo da capa do disco. Meu pé é setentista e não posso negar. E a estética que busco agora nesse momento da minha vida é setentista. E a Lia e o Haroldo é que faziam essas conexões pra mim”. A foto de capa capturou bem a estética proposta: há um clima onírico nela. Clima que identificamos também em seu show, onde a combinação de luz, fumaça e efeitos de guitarra recria essa uma cena do Sonhar. Para chegar a esse resultado, Sol lidou com processos de escolha de papel, cores e textura junto ao Ocupeacidade. “Quando busquei o Ocupeacidade, eu passei quatro meses indo três vezes por semana ao ateliê deles, o que me trouxe a oportunidade de trabalhar com processos extremamente manuais e orgânicos, a tipografia, a serigrafia…”. A arte do disco foi feita para ser tocada e para que esse toque leve à sentimentos, antes mesmo de colocar o disco na agulha. O tátil levando ao emocional. “Eu preciso de algo que seja manual, que seja tátil, que as pessoas sintam o relevo, que comunique politicamente, que esteja ligado as minhas raízes. Estou muito feliz com a arte do meu disco e ela não é efêmera, principalmente”.

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No show de lançamento em Fortaleza, Sol distribuiu emoções e arrancou arrepios de sua plateia. O espetáculo foi composto pelas 8 faixas de seu álbum mais duas interpretações de Jards Macalé: ‘Meu Amor, Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata’ e ‘Soluços’. O primeiro bloco de músicas inclui ‘Portentosa’, ‘Mil Setas’ e ‘Corpo Solto’. Nesse primeiro momento, parecia que Sol ainda estava presa, sem relaxar o suficiente para nos agraciar com sua incrível performance ao palco, principal aliada de sua voz. Na sequência, sem a cozinha da banda, Felipe Faraco no baixo e Xavier Francisco na bateria, contando apenas com os guitarristas Bruno Rafael e Carlos Gadelha, Sol canta ‘Doce Amável’ e ‘Vermelho Azulzim’. Nessa última música, ela se emociona muito. Talvez uma reciprocidade de sentimentos quando olhou nos olhos de seu público. Ou quem sabe um único olhar especifico fez acontecer. Ou, por pura coincidência ou não, como ela mesma canta em ‘Jardim Suspenso’: “Chorei, pois doeu demais, e eu não fui capaz de me conter”. Algo saiu junto com as lágrimas e, a partir desse momento, Sol se transforma e o show segue para seu auge com uma energia incrível. Ela recebe no palco Fernando Catatau e dança muito em seus solos de guitarra durante ‘Jardim Suspenso’. Não nega sua veia setentista quando canta ‘Soluços’, que infelizmente não está no disco. E que interpretação. “Quando você me encontrar, não fale comigo, não olhe pra mim, eu posso chorar”. Fecha o setlist com ‘Carnaval’, uma melancólica música carnavalesca, e, em seguida, ‘Beco da Noite’, um pedido de justiça.

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Durante o bis, dois momentos especiais. Como toda boa festa, o primeiro show desse disco não poderia deixar de ter um surpresa. Pois quando Soledad está cantando ‘Jardim Suspenso’, sobe correndo pela lateral do palco o gigante Daniel Groove e arrebata o microfone da mão da pequena Sol para cantar alguns versos de sua composição. Os dois ainda terminam a música cantando juntos.

Quando a apresentação chega ao fim, ao cantar novamente ‘Soluços’, ela solta toda sua voz e corpo em um uníssono. A banda toca como se fosse seu último show e Catatau e Bruno Rafael fazem um espetáculo à parte com suas guitarras. O olhar expressivo de Sol se dirige às faces do público, afirmando “eu posso chorar”, até cruzar com o olhar de sua mãe bem próximo ao palco. E ela solta: “mãe, eu posso chorar”, em um último momento de arrepio no show.

Recentemente, Sol pediu ajuda em seu perfil em uma rede social para responder a uma pergunta: “o que uma pessoa pode esperar de um show meu?”. Muitas respostas surgiram. Mas após o que vimos nesse show, a resposta é clara: Soledad, arrepios, calor e desordem.

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